Muitas perguntas, hoje, na Europa, que noutro contexto
pareceriam óbvias, não chegam a ser suprimidas porque sequer são feitas
Por Boaventura de Sousa Santos (*) / Texto en portugués.
Quando a guerra de informação atinge as proporções que hoje
tem, o público é condicionado para rejeitar o que quer que se afaste da narrativa
que se pretende impor. Esta nunca é totalmente falsa nem totalmente verdadeira.
O que a caracteriza é não querer ser questionada para poder mobilizar ao máximo
as emoções de um público cativo. Muitas perguntas, que noutro contexto
pareceriam óbvias, não chegam a ser suprimidas porque nem sequer se fazem. São
perguntas absurdas. Imaginemos algumas.
1. É possível ganhar uma guerra a uma potência nuclear?
Nos últimos setenta anos a doutrina da dissuasão nuclear
assentou na resposta negativa a esta pergunta. Se a atual guerra na Ucrânia
conduzir a uma resposta diferente, constituirá uma subversão total das teorias
militares e geoestratégicas. Se tal for o caso, outra pergunta emerge: em que
situação fica quem ganha? E quem perde? As ruínas dos vencedores distinguem-se
das ruínas dos vencidos? Estas perguntas conduzem a uma outra ainda mais
crucial: quaisquer que sejam as provocações, pode uma potência nuclear iniciar
uma guerra, sendo certo que sobre as guerras só se sabe quando começam e nunca
quando acabam nem como acabam? Se se entender que as respostas convencionais da
dissuasão nuclear ainda prevalecem, então impõe-se de imediato a negociação, e
nela todos devem participar e todos têm de ceder algo, tal como aconteceu no
Tratado de Vestefália de 1648. Impõe-se de imediato a negociação, e nela todos
devem participar e todos têm de ceder algo, tal como aconteceu no Tratado de
Vestefália de 1648
2. Porque é que a guerra da informação é mais eficaz na
Europa do que no resto do mundo?
Quando intervenho em debates públicos fora da Europa, o
carácter unilateral da narrativa euro-norte-americana é frequentemente
questionado. A posição do Papa Francisco sobre as provocações da NATO suscitou
mais atenção na América Latina do que na Europa ou nos EUA (mesmo sabendo-se
que Joe Biden é católico). A resposta fácil a esta pergunta é que a guerra da
Ucrânia ocorre na Europa e é, por isso, natural que a Europa se alinhe mais
acriticamente com a narrativa norte-americana, quer quanto às causas da guerra,
quer quanto à caracterização do regime político da Rússia.
A resposta mais esclarecedora parece-me ser que a Europa tem
uma experiência histórica de relações com os EUA caracterizadas pela
benevolência. Afinal, os EUA ajudaram na luta contra o nazismo, promoveram o
Plano Marshall (“Programa de Recuperação Europeia”) entre 1948 e 1951 e
assumiram a responsabilidade pela segurança da Europa ocidental. Pelo
contrário, noutras regiões do mundo a história das relações com os EUA é muito
mais complicada e inclui interferências, invasões, imposições, fomento de
golpes antidemocráticos, critérios duplos na defesa dos direitos humanos, etc.
Tudo isto, combinado com as possíveis repercussões diretas ou indiretas das
sanções económicas contra a Rússia nos seus países e com a extrema intensidade
da narrativa anti-Rússia (onde é fácil antever a próxima narrativa anti-China),
constitui um vasto campo para questões e dúvidas.
3. Qual o futuro da esquerda na Europa depois da guerra na
Ucrânia?
Com poucas exceções, as esquerdas europeias condenaram a
invasão da Rússia, mas até agora renunciaram a qualquer pensamento crítico
sobre as causas da guerra, a expansão da NATO (o que é surpreendente porque, no
passado, foram anti-NATO), as consequências sociais e políticas do rearmamento
da Europa, a hipocrisia da direita ao falar da necessidade dos sacrifícios e da
perda do conforto porque sabe que são sempre os mesmos a sofrê-los, a urgência
da negociação e da paz, o racismo e o sexismo de que são vítimas algumas e
alguns dos refugiados da Ucrânia, a incapacidade da versão hegemónica dos
valores europeus em ser verdadeiramente universal e condenar as violações dos
direitos humanos atualmente em curso contra palestinos, sírios, afegãos,
sarauís, e tantos outros.
Acresce que a direita tem vindo a assumir um triunfalismo
absurdo, como se defender os valores da democracia e da autodeterminação dos
povos fosse seu patrimônio, quando a história da Europa reza o contrário. Por
tudo isto, é possível que a esquerda saia desarmada da atual crise e que as
mais que prováveis perdas de salários e pensões, antes impostas pela “crise”,
sejam no futuro impostas por imperativos igualmente “patrióticos”. Daí, a
próxima pergunta.
4. No futuro próximo, será sustentável o relativo bem-estar e
o Estado social de direito que caracterizou a Europa ocidental nos últimos
setenta anos?
Para além de muitas outras razões, a relativa prosperidade
europeia assentou em três pilares: tributação progressiva, combinada com a
nacionalização de ativos estratégicos; ausência de gastos militares; exploração
dos recursos naturais fora da Europa. A tributação progressiva significava que
quem tinha mais rendimento ou riqueza pagaria mais impostos. As taxas de
tributação podiam atingir 70%. Esta foi a maneira de financiar as abundantes
políticas sociais que estiveram na base do bem-estar dos cidadãos. Com a
emergência do neoliberalismo e com o Consenso de Washington de 1985, que o
consagrou, este pilar ruiu. Gerou-se a ideia de que os impostos eram um
obstáculo ao desenvolvimento econômico, e o mesmo acontecia com os ativos
estratégicos nacionalizados. As agências multilaterais (FMI e BM) passaram a
impor a baixa de impostos e a privatização dos recursos estratégicos. Privados
dos recursos dos impostos e confrontados como os possíveis custos políticos
decorrentes de reduzir drasticamente as políticas sociais, os Estado recorreram
ao endividamento. E foi assim que explodiu a dívida pública externa dos
Estados. Dependentes da oscilação e da especulação das taxas de juro, os
Estados viram-se na contingência de baixar os seus gastos (investimentos)
sociais.
O segundo pilar da prosperidade europeia foi o de não
precisar de fazer despesas militares, i.e. de gastar somas avultadas em
material de guerra. Afinal, a segurança europeia estava garantida pelos EUA
através da NATO. Este pilar acaba de ruir com a guerra da Ucrânia. Todos os
países europeus estão a rever os seus orçamentos de modo a aumentar as despesas
militares e os seus contributos para o reforço da NATO. Esta, entretanto,
prepara-se para novas expansões nos países com fronteira com a Rússia. Se a Alemanha
cumprir o que promete (gastar 2% do PIB em armamentos) será dentro de anos o
quarto exército mais poderoso do mundo. Ora, é sabido que, como o orçamento não
é infinitamente elástico, o dinheiro que abundar para a compra das armas
certamente faltará para melhorar as escolas, a saúde pública, etc, em suma,
para sustentar o bem-estar social.
Neste momento, resta à Europa o terceiro pilar do seu
bem-estar, os investimentos das suas empresas nos recursos naturais existentes
em outros continentes e os avultados lucros que geram. Também este pilar está
ameaçado, não só pela concorrência de outros países, como pela resistência dos
países onde esses recursos existem, isto para não falar da violência
paramilitar que rodeia cada vez mais os empreendimentos mineiros. Perante isto,
a direita e a extrema-direita estão prontas para prosperar com o novo status
quo. E as esquerdas, que foram as grandes responsáveis pela consolidação da
social-democracia? Quais vão ser as suas posições? Que novos tipos de
convergência vão ser necessários? Que eu saiba, a única discussão em curso na
Europa neste momento ocorre na projetada unidade de esquerda em volta da França
Insubmissa de Jean-Luc Melénchon com vista às próximas eleições legislativas.
(*) Diretor Emérito do Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador do Observatório
Permanente da Justiça.
Tomado de Sul 21 / Brasil.