O jihadismo
moderno, em qualquer das suas variantes, seja o da Irmandade Muçulmana do Qatar
e da Turquia, seja – muito mais radical e perigoso – o da teocracia iraniana –
é o fascismo dos nossos dias.
Paulo Casaca - Bruselas – Nota en portugués / Tomada de Jornal Tornado
1.
O jihadismo centra-se na
misoginia
Uma das
primeiras medidas tomadas pelas autoridades iraquianas depois da ‘revolução
islâmica’ – como tentei explicar em livro que escrevi sobre o assunto, a força
militar que afastou Saddam foi americana, mas quem comandou as principais
mudanças políticas subsequentes foi o jihadismo iraniano – foi a de obrigar as
mulheres a depender da autorização dos maridos para obter passaporte.
Como pude
testemunhar na altura, a instituição desta tutelagem das mulheres (que não
vigora no Curdistão iraquiano) foi fortemente sentida por estas como um brutal
retrocesso civilizacional. O regime de Saddam foi uma ditadura despótica,
sanguinária e mesmo genocidária, mas não impunha esta tutelagem das mulheres. A
história provou que era possível fazer pior que Saddam, com a agravante de esse
pior ser zelosamente escondido da opinião pública.
O nó górdio
do jihadismo é a negação da igualdade de direitos para as mulheres. A história
social ajuda-nos de resto a entender isso. Como sabemos, com raras e honrosas
excepções, a história da humanidade é marcada por uma persistente misoginia. É
mais fácil encontrar no pensamento grego clássico que chegou aos nossos dias
humanidade e consideração por escravos ou mesmo por animais do que a defesa da
igualdade de direitos entre sexos.
Na época
contemporânea, só ao longo do século XX, muito depois do início do movimento
democrático, é que foi conquistado o princípio da igualdade de direitos para as
mulheres, e foi-o lentamente, a reboque do movimento feminista.
O jihadismo
moderno é um movimento contemporâneo do movimento de igualdade para as mulheres
e profundamente reacionário, sendo que a radical oposição ao feminismo moderno
é uma das suas principais motivações.
No Irão, o
golpe antiliberal de 1953 contra Mossadegh – organizado em parceria pelo Xá, o
clero Xiita e os serviços secretos britânicos – deu origem a uma curta
lua-de-mel entre a coroa autoritária e o clero, baseada na repressão da
dissidência religiosa (a perseguição dos Bahai e a demolição dos seus templos a
que Mossadegh se tinha oposto recomeçou logo a seguir à sua deposição).
Sob pressão
norte-americana, nos anos sessenta, o Xá promoveu a ‘revolução branca’ que
passava pela reforma agrária (o que incomodava fortemente o clero
latifundiário) mas tinha como ponto essencial a liberalização social,
nomeadamente a promoção dos direitos da mulher. Foi este o ponto de ebulição
que levou o clero a declarar o Xá como herético e a reclamar a sua execução.
2. Feminismo, radicalismo e jihadismo
Quem tenha um
mínimo de compreensão pela dinâmica do que se passa no mundo e algum sentido do
equilíbrio não pode deixar de constatar que é no jihadismo que se encontra a
principal força reacionária contemporânea que tem como timbre o combate os
direitos da mulher e que, em consequência, é nos países muçulmanos que os
direitos das mulheres são mais atacados.
Isto não nos
pode levar a concluir que o Islão é necessariamente uma religião contra os
direitos das mulheres. No Curdistão iraquiano, por exemplo, onde o Islão é a
religião dominante, a igualdade de direitos para as mulheres é uma preocupação,
sendo que existem movimentos islâmicos que fazem da igualdade de direitos para
as mulheres a pedra angular da sua política.
Por outro
lado, há que entender o radicalismo como algo natural no movimento feminista,
como aliás em qualquer outro movimento cívico. Traçar a fronteira entre o que é
normal e o que é excessivo nem sempre é fácil e dependerá também do ponto de
vista do observador.
É verdade
que, como todo o radicalismo, este pode transformar-se num movimento oposto ao
que proclama. Nas sociedades democráticas (Alemanha e Índia, por exemplo) há
quem defenda o apartheid de género como forma de defender as mulheres, numa
lógica em que os homens são por definição agressores.
Esse
radicalismo dá assim cobertura à misoginia jihadista que, justamente, tem no
apartheid de género a sua imagem de marca, impondo-a em numerosos domínios,
nomeadamente nos transportes públicos.
Para os
portugueses da geração do 25 de Abril, como eu, que retêm na memória o fim do
apartheid de género educacional como um dos seus principais símbolos, isto
deveria ser tão evidente que não precisaria de qualquer explicação, mas tendo
em conta as acções, declarações e posicionamentos de muitos dos que se reclamam
de ‘esquerda’ (e isto vai para lá do Bloco de Esquerda) é essencial recordá-lo.
Aqui, é
também importante ter em conta outra característica essencial do Jihadismo
(esta baseada na tradição clerical e especialmente refinada entre o clero
xiita) que é o princípio da dissimulação, do discurso duplo, da efabulação ou
da pura mentira.
Tal como
quando da invasão do Iraque, em que a teocracia foi capaz simultaneamente de a
provocar e de a denunciar como consequência do pérfido imperialismo americano,
também com o feminismo os jihadistas são capazes de fazer longas prédicas a
explicar que o que defendem apenas tem como objectivo defender as mulheres, ao
mesmo tempo que tudo fazem para as reduzir a uma condição inferior.
Para
finalizar, temos que ter em conta a ingenuidade, ou mesmo angelismo, dominante
nas nossas sociedades democráticas, e que explica como é possível que um
movimento que mobilizou muitos milhões de norte americanas (como eu pude
constatar, fundamentalmente oriundas da classe média instruída de origem
anglo-saxónica), a marcha das mulheres, fosse dirigido por Linda Sarsour, uma
das principais dirigentes no Ocidente do movimento jihadista moderno.
O que nos
mostra a história é que, contrariamente ao que nos querem fazer crer, o nazismo
impôs-se mais por força dos que o que o queriam apaziguar do que pela fé dos
seus partidários; por outras palavras, a ingenuidade fantasiosa foi mais
importante do que o fanatismo na materialização da ameaça nazi.
3.
Da transição saudita ao
fascismo pintado de vermelho
A Arábia
Saudita é um puro fruto da Jihad, sendo que mesmo o nome do país lhe foi dado
pelo chefe tribal que se aliou ao clero fanático para conquistar o poder.
Juntando o fanatismo religioso à força do dinheiro do petróleo, foi durante
muito tempo o coração do reacionarismo mundial.
E isso foi
assim até que essa posição começou a ser-lhe disputada pela nova geração
jihadista, mais radical que a anterior, que considerou inaceitáveis as
concessões da coroa saudita à modernidade.
A Arábia
Saudita, ao longo de décadas, foi procurando responder ao desafio do jihadismo
moderno com um misto de apaziguamento – cedendo às reivindicações do clero,
financiando-as principescamente, apoiando o seu proselitismo e a sua
doutrinação fanática – ou rivalizando com ele em fanatismo. Falhou em toda a
linha!
A Arábia
Saudita desenvolveu-se como uma monarquia feudal com mais de três dezenas de
clãs reconhecidos oficialmente (na verdade mais de mil, como me confidenciou um
príncipe dissidente que viria a exilar-se e depois a desaparecer) em que a
intriga e a disputa interna feita por todos os meios, incluindo o financiamento
do jihadismo terrorista, foram a norma.
Com o actual
príncipe regente, Mohammed bin Salman (MBS), passámos da monarquia feudal à
absoluta. Meteu na prisão ou fez desaparecer todos os que se atreveram a
enfrentá-lo; contrariamente aos seus antecessores, não respeitou sequer nenhum
poder feudal. Ao mesmo tempo anunciou um conjunto de reformas destinadas a
cercear o poder do clero e a sua doutrina jihadista, nomeadamente
distanciando-se do racismo anti-Judeu e abolindo as leis mais misóginas do
país, como as que estipulam a tutelagem das mulheres ou as que as proíbiam de
conduzir.
Enquanto
isto, no mundo ocidental, mas em particular nos EUA, e na sequência do
movimento nascido da marcha das mulheres a que fizemos referência, aparece um
conjunto de protagonistas femininos simbolizado por quatro congressistas
democratas (conhecidas por ‘the squad’) que fazem a apologia do racismo
antijudeu ou mesmo antibranco (o problema não é a Jihad, é o homem branco, diz
uma ex-refugiada da Somália) escondido atrás de um conjunto de propostas de
esquerda.
Nestas
circunstâncias, é essencial saber distinguir o essencial do acessório e,
literalmente, ‘não cair no conto do vigário’.
O jihadismo
moderno, em qualquer das suas variantes, seja o da Irmandade Muçulmana do Qatar
e da Turquia, seja – muito mais radical e perigoso – o da teocracia iraniana –
é o fascismo dos nossos dias.
Por mais
maquilhado que ele se apresente com ecologia, igualdade económica, ‘feminismo
islamista’, etc. é ele o adversário principal que os verdadeiros antifascistas
têm de combater.
Tudo o resto
é acessório quando não mesmo ilusório.