Os novos governos de esquerda da América Latina deverão
enfrentar problemas que não se colocavam para os socialistas do século pasado
Chile é um dos países que passou a ser governador pela esquerda, após um ciclo de governos neoliberais.
José Luís Fiori (*) Texto en portugués.
“Although
anything can happen within the train, much of it unpredictable, there is one
thing the historian must not forget: trains can go faster or slower, they can
come to a stop, they can explode, but they are constrained by the tracks.
History is about what people do within the limits of their landscape, their
needs and their past”.
Sassoon,
D. One Hundred Years of Socialism. London:Fontana Press, 1997, p. 755
Todos os partidos socialistas que governaram democraticamente os estados europeus da primeira metade do século XX, tiveram que enfrentar o mesmo desafio ou “duplo paradoxo” de gerir o quotidiano de uma economia capitalista, propondo-se ao mesmo tempo reformá-la ou transformá-la numa economia socialista, através de políticas públicas que necessitam do sucesso capitalista para poder se autofinanciar e sobreviver. O mesmo desafio que enfrentarão nesta terceira década do século XXI, os partidos e governos de esquerda latino-americana que estão sendo chamados a governar e administrar uma economia capitalista que se encontra em frangalhos depois da pandemia do coronavírus, e do fracasso generalizado dos governos ultraliberais do continente. Estes governos terão que enfrentar alguns problemas que são novos e que não estavam postos da mesma maneira no caso dos governos socialistas europeus, mas a contradição fundamental segue sendo a mesma: depender do sucesso capitalista para realizar “objetivos socializantes”. Aliás, a origem deste paradoxo é muito antiga, muito anterior ao aparecimento do socialismo e ao surgimento do próprio capitalismo industrial.
Salvo engano, ela remonta à primeira hora da modernidade
europeia, quando Gerrard Winstanley (1609-1676), um soldado do exército de
Oliver Cromwell (1599-1688) que derrotou a monarquia inglesa e decapitou o Rei
Carlos I (1600-1649), se transformou num líder revolucionário na hora em estas
mesmas tropas de Cromwell começaram a discutir o futuro da Inglaterra depois da
instalação da república inglesa de 1649. Ao propor às tropas o seu projeto
revolucionário, Winstanley formulou pela primeira vez – em clave moderna – o
que viria a ser o fundamento último da utopia socialista, em todos os tempos e
lugares: a ideia de que os homens só poderiam se tornar livres e iguais quando
todos se apropriassem coletivamente da propriedade da terra e dos seus frutos.
Donde, concluía Winstanley, através de uma rigorosa dedução economicista,
qualquer reforma política de cunho liberal ou democrática só teria sentido e
eficácia depois que desaparecesse a propriedade privada e as desigualdades
econômicas entre os seres humanos. Ou seja, resumindo: para que os homens
fossem livres, a propriedade da terra teria que ser desapropriada e
coletivizada.
No século seguinte, vários pensadores franceses, entre eles
Marechal (1750-1803) e Babeuf (1760-1797), defenderam a mesma tese central de Winstanley,
mas tocou a Jean Jacques Rousseau (1712-1778) abrir um caminho novo na direção
do coletivismo e da democracia, ao propor que fosse o Estado quem assumisse em
última instância a propriedade coletiva da terra. Uma ideia que foi retomada
por Karl Marx (1818-1883) no programa mínimo de governo que aparece no final do
Manifesto Comunista escrito com Friedrich Engels (1820-1895), a pedido da Liga
dos Comunistas, de origem alemã mas que havia se reunido na cidade de Londres
em 1847. Nesse programa, a estatização progressiva da propriedade privada
substitui a ideia originária da comunidade utópica de Winstanley e aprimora a
proposta estatal de Rousseau. A estatização passava a ser o caminho ou
estratégia de governo, mas o objetivo final do programa comunista seguia sendo
o “fim da propriedade”, e mais à frente, o fim do próprio Estado, que deveria
ser demitido de sua função de administrador das pessoas.
Seria instalado aí, nesse momento e de forma definitiva, o
paradoxo da proposta socialista de administração e reforma simultânea do modo
de produção capitalista. Um problema que não se colocava para os “socialistas
utópicos” ou para os “anarquistas” que não se propunham a tomar o governo dos
Estados capitalistas; pelo contrário, o que propunham era construir, a partir
da própria sociedade, experiências econômicas comunitárias, cooperativas ou
solidárias, através da prática de políticas locais e do exercício da democracia
direta. O mesmo se pode dizer, numa direção oposta, das revoluções comunistas
que tomaram o Estado e coletivizaram a propriedade privada, desmontando o
sistema capitalista e propondo-se a construir de imediato as bases de um novo
“modo de produção”.
Mesmo sem querer esgotar um assunto de tamanha complexidade,
é possível contar a história da experiência governamental da esquerda e de seus
partidos socialistas ou social-democratas do século XX, como um debate ou
tensão permanente entre sua proposta de eliminar a propriedade privada e sua
obrigação de gerir um sistema econômico e uma sociedade com base na propriedade
privada; e entre seu objetivo final de eliminação do Estado e a intenção de
utilizar o Estado estrategicamente como seu principal instrumento para
modificar ou revolucionar o desenvolvimento capitalista. Essa tensão permanente
atravessa a história dos debates socialistas do século passado, como foco
central das sucessivas “revisões” táticas a que foi submetida a utopia original
através do tempo.
A mais famosa dessas “revisões” foi proposta pelo
social-democrata alemão Eduard Bernstein, em 1894. Segundo Bernstein, o
progresso técnico e a internacionalização do capital haviam mudado a natureza
da classe operária e do sistema capitalista, e por isso ele propunha que o
socialismo já não fosse mais considerado o objetivo último do movimento, e que
este movimento de transformação e transição fosse assumido como um “processo
sem fim”. Uma tese que foi conquistando cada vez maior número de adeptos dentro
da social democracia europeia da primeira metade do século XX, período em que
os socialistas participaram de várias coalizões governamentais com menor ou
maior grau de sucesso – neste caso, com destaque para o caso sueco. Até o
momento em que a maioria dos social-democratas europeus já tinha abandonado a
ideia/projeto do fim da propriedade privada e do próprio Estado, à altura dos
anos 1950/60, quando os partidos socialistas, social-democratas e comunistas
europeus formularam – já depois da Segunda Guerra Mundial (1938-1945) – seus
dois grandes projetos ou programas de reforma e “gestão igualitária do
capitalismo” que dominaram o pensamento socialista europeu até a crise
econômica capitalista dos anos 70 e a grande virada conservadora do pensamento
econômico ocidental.
O primeiro foi o projeto do “Estado de bem-estar social”
adotado pela maioria dos governos social-democratas ou trabalhistas europeus
entre 1946 e 1980. Seu objetivo fundamental foi o crescimento econômico, o
pleno emprego e a construção de redes públicas universais de educação, saúde e
proteção social. O segundo, e menos experimentado, foi o projeto do
“capitalismo organizado”, que se propunha a construir um capitalismo mais justo
e igualitário, regulado e planejado pelo Estado, associado a um “núcleo
econômico estratégico” composto por grandes empresas estatais e privadas. Este
projeto esteve presente na concepção do programa de governo de Salvador
Allende, no início dos anos 70, e também na primeira fase do governo de
François Mitterand, no início da década de 1980.
Esses dois projetos ou estratégias tinham em comum uma nova
versão da proposta original do soldado inglês Gerard Winstanley e dos próprios
socialistas do século XIX. Nos dois casos, a equação socialista era a mesma:
“liberdade = igualdade econômica = fim da propriedade privada”. A partir da
década de 1950, entretanto, esta equação socialista adotou uma nova fórmula:
“liberdade = igualdade social = crescimento econômico acelerado”. A partir de
então, os socialistas e social-democratas deixaram de esperar pela “crise
final” do capitalismo e passaram a apostar no maior sucesso possível do próprio
capitalismo, como forma de criar empregos e estratégia para financiar suas
políticas sociais e distributivas de caráter cada vez mais universal. O novo
projeto exerceu grande influência em toda a periferia europeia, e em todos os
partidos de esquerda latino-americanos que adotaram a bandeira do
“desenvolvimentismo”, defendendo políticas econômicas favoráveis ao crescimento
do capital e ao pleno emprego. E foi então que nasceu a convergência dos
socialistas e social-democratas com as ideias, teses e políticas keynesianas.
Essa aliança ou convergência, entretanto, se complicou depois
da crise econômica capitalista e ocidental dos anos 70, quando ficou claro que
a nova heterodoxia políticoeconômica” só havia funcionado simultaneamente a
favor do capital e do trabalho durante o período limitado e excepcional da
reconstrução e expansão “regulada” do capitalismo após a Segunda Guerra, entre
1945 e 1975, aproximadamente. Foi depois desse período de bonança, e em
particular depois do fim do “mundo comunista”, que os socialistas promoveram
sua terceira “grande revisão”, nas décadas de 80 e 90, liderados pelos
trabalhistas ingleses e social-democratas alemães. Só que neste caso o novo
programa da chamada “terceira via” abriu mão de boa parte do que havia sido
construído pelos trabalhistas e social-democratas sob a bandeira do “Estado de
bem-estar social”, uma vez que a “promoção do capital” pelas novas políticas
econômicas neoliberais envolvia a perda de muitos dos direitos conquistados
pela classe trabalhadora. Assim mesmo, esta terceira grande “revisão
socialista” exerceu grande influência sobre muitos grupos da esquerda
norte-americana, e sobre amplos setores da esquerda latino-americana, depois do
fim das ditaduras militares do continente, e depois do queda do Muro de Berlim,
em 1989.
Por esse caminho, o que no início foi considerado como uma
sucessão de “ajustes estratégicos” bem-sucedidos, no seu devido tempo acabou
levando os socialistas europeus a uma espécie de beco sem saída. De “revisão em
revisão”, eles primeiro abriram mão do seu objetivo final socialista, e depois
de sua estratégia que passava pela estatização da propriedade privada, para
finalmente questionar as próprias políticas econômicas e sociais que haviam se
transformado na sua marca distintiva no século XX: favoráveis ao crescimento
contínuo, ao pleno emprego e a construção e aperfeiçoamento progressivo do
“Estado de bem-estar social”. Não foi sem motivo, portanto, que os partidos
socialistas, social-democratas e trabalhistas foram abandonados pelo seu
eleitorado e quase varridos do mapa político europeu nas duas primeiras décadas
do século XXI. Mesmo assim, enfraquecidos e sem uma identidade clara,
conseguiram retornar ao governo de alguns países importantes da EU nestes dois
últimos anos, e hoje estão na linha de frente da luta contra a Rússia na
Ucrânia, apoiando o rearmamento e militarização da Europa, e deverão pagar a
conta da crise econômica e social induzida ou piorada pelas “sanções
econômicas” que impuseram à Rússia.
Os novos governos de esquerda da América Latina deverão
enfrentar problemas que não se colocavam para os socialistas do século passado,
como é o caso da “sustentabilidade”, das “identidades”, e da “reinvenção
democrática”, e terão que encarar a nova realidade capitalista imposta pelo
poder do capital financeiro internacionalizado, e pelos constrangimentos da
“globalização produtiva” que está em plena reversão neste momento, como efeito
da pandemia e da Guerra da Ucrânia. Mas ao mesmo tempo, o continente latino-americano
ainda tem que resolver problemas do “século passado europeu”, como o do próprio
desenvolvimento econômico e da melhor distribuição da renda, mas também, da
educação, saúde e proteção social universal de suas populações. Por isso, seja
qual for o futuro da social-democracia europeia depois da guerra, sua história
passada segue sendo um importante roteiro para a discussão das estratégias e
das políticas que deverão ser adotadas na América Latina para reconstruir um
continente devastado nestes últimos anos, pela pandemia, e pelo fanatismo
ideológico e econômico da extrema-direita ultraliberal.
(*) Professor
emérito de economia política internacional e de ética internacionais do
Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional, PEPI da UFRJ; e
do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada, NUBEIA da UFRJ; coordenador do GP da
UFRJ/CNPq “O poder global e a geopolítica do Capitalismo”; coordenador adjunto
do Laboratório de “Ética e Poder Global”; pesquisador do Instituto de Estudos
Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis, INEEP. Publicou O Poder global
e a nova geopolítica das nações, 2007, e História, estratégia e
desenvolvimento, 2014, pela Editora Boitempo; e Sobre a Guerra, 2018, A
Síndrome de Babel, 2020; e, Sobre a Paz, 2021, pela Editora Vozes.
Fuente del texto: Sul 21 / Brasil.