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02 septiembre, 2019

20 anos de referendo em Timor-Leste. A UNTAET transmitiu de facto o poder aos timorenses?


                                           Avelino Coelho e Xanana Gusmão



Esta é a pergunta colocada pelo político e académico Avelino Coelho, após 20 anos da data que assinalou o referendo em Timor-Leste, em 30 de Agosto de 1999, e depois do governo transitório da ONU ter cumprido a sua missão.
Passadas duas décadas do referendo em Timor-Leste e da restauração da independência em 2002 persistem os problemas socioeconómicos neste país lusófono. Para tentar analisar-se a situação em que este país se encontra, decidimos auscultar a opinião de um dos nacionalistas mais coerentes e respeitados de Timor-Leste, Avelino Maria Coelho da Silva.
Interpelado pelo nosso Jornal sobre o day after do Referendo, Avelino Coelho interroga-se: “a UNTAET transmitiu de facto o poder aos timorenses?”.
O referendo e as questões não resolvidas
As negociações tripartidas conduzidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) e envolvendo Portugal e a Indonésia, apesar da controvérsia que gerou, culminaram, em 5 de Maio de 1999, com a assinatura de um acordo para a realização de uma consulta Popular em Timor-Leste que ocorreu no dia 30 de Agosto de 1999, há duas décadas.

Por ocasião da efeméride, o Parlamento Nacional de Timor-Leste  anunciou a edição para breve de um livro «sobre o Referendo» para honrar a memória de todos aqueles que sofreram no arrastado conflito político-militar cujos excessos provocaram a morte de muitos milhares de pessoas.
A propósito do referendo, Avelino Coelho, conhecido durante a luta de libertação pelo nome de código “Shalar kosi / FF”, e considerado um dos principais líderes da Frente Clandestina, referiu que o referendo expressou “a realização histórica de um povo que acreditou no seu direito e por ela, denodadamente, se bateu, apesar das incomensuráveis dificuldades e desafios”.
Mas, passaram 20 anos do referendo, e persistem muitos problemas socioeconómicos neste país lusófono, havendo inúmeras questões não resolvidas. A reflexão em torno das consequências da realização do referendo, segundo Coelho, é por isso “um imperativo nacional na medida em que apesar de termos anunciado a nossa independência, é sabido que mesmo depois da Libertação, persistem os problemas socio-económicos, sem solução, e arrastam-se cada vez mais, distanciando as famílias das vítimas da realização dos sonhos pelos quais os seus ente queridos deram a vida”.
A guerra de libertação de Timor-Leste e a luta pela democratização na Indonésia
As negociações tripartidas conduzidas pela ONU, envolvendo Portugal e Indonésia, apesar da controvérsia que gerou, em 5 de Maio de 1999, culminaram com a assinatura do acordo da realização da consulta Popular.
O nosso inquirido é da opinião que em relação à história de libertação de Timor-Leste muito há para contar e escrever.
Para este académico e político, “é fundamental registar que a assinatura do acordo de 5 de Maio de 1999 não foi somente produto da capacidade diplomática de Portugal e dos seus aliados, mas houve outros factores, como a contínua presença da Guerrilha, que ganhando novas forças e novas formas de combate, alastraram o campo de combate para a Indonésia, onde se destacaram as acções desenvolvidas pela Brigada Negra (BN), pela Associação Socialista de Timor (AST), e por outras organizações estudantis que pugnavam pela indonesianização do conflito de Timor-Leste”.
Sobre este período da história de libertação de Timor-Leste, analise-se o excerto de um documento escrito por Avelino Coelho entregue no Parlamento Nacional:
A guerra de Libertação de Timor-Leste,  bem como a Luta pela Democratização na Indonésia, eram dois lados da mesma moeda, perante o regime opressor. Um dos grandes opositores da Indonésia tinha expressado numa reunião que tive com os líderes da OJECTIL,  em 1984 em Díli,  de que a guerra de libertação é uma guerra que não conhece fronteiras físicas e geográficas. Ele estava correcto! Pois, porque a Luta de Timor-Leste, a iniciar nos anos de 1987, encontrou nos movimentos pró-democratas da Indonésia um aliado táctico e estratégico fiel até à queda de Soeharto. 
Efectivamente, a elevada consciência nacional dos  movimentos democráticos, inicialmente em 1996 avançados pelo PRD ( Partai Rakyat Demokratik) e pelo PUDI (Sri Bintang Pamungkas) e que  veio a culminar num movimento amplo após a crise monetária e económica,  impulsionou a queda de Soeharto; a subida ao trono por Habibie, todos, comulativamente, forçaram a diplomacia portuguesa, a Austrália  e outros a aceitar a proposta de Habibie.
Contudo, lendo bem o conteúdo do acordo de 5 de Maio de 1999, tudo indica que a Diplomacia Portuguesa marcou um ponto demasiado fraco em não exigir as opções, votar por Portugal ou por Indonésia; ou Votar pela Proclamação de 28 de Novembro ou pela Declaração de Balibó. A Diplomacia Indonésia foi muito mais longe! Conseguiu fazer com que Portugal aceitasse as duas opções, “Votar pela Autonomia, ou Contra a Autonomia”, proposta avançada pela diplomacia Indonésia.
Ao aceitar esta proposta, Portugal demonstrou a sua fragilidade porque a proposta condicionava a não negação do estatuto político de Integração. Quer isto dizer que o  estatuto de integração não se questionava porque autonomia é estatuto administrativo. Portugal conseguiu ultrapassar esta situação somente com a inclusão do texto “se votar contra a autonomia, significa separar-se da Indonésia” e que as duas potências procurarão mecanismos legais internos para retirar Timor-Leste do seu quadro legal e entregar Timor-Leste às Nações Unidas, para concluir o processo de descolonização interrompido em 1975.
O Partido Socialista de Timor (PST), em que eu estava nele envolvido com outros camaradas, tais como António Maher Lopes (Fatuk Mutin), Nelson Correia (Mau Tula), José da Costa Belo (Mausinga), Gui Campos, Flarinando Coimbra, Azancot de Menezes e outros membros, apresentou um projecto de Descolonização de Dois Tetos.
Esta proposta propunha a  criação de um Comité de Bons Ofícios, que seria composto por Portugal, pela Indonésia, e um terceiro Estado, gerido pelas Nações Unidas, para administrar os resultados do Referendum, antes de se passar o poder aos timorenses. O outro teto compunha-se  dos líderes timorenses das duas opções para acompanhar e contribuir na gestão da transição política e, paralelamente, assumir, faseadamente a administração. O Comité deveria reunir-se sempre com o segundo Teto para as tomadas de decisões.
De qualquer das maneiras, foi naquele quadro político-legal que se organizou o Referendum. O REFERENDO produziu o resultado. O Povo de Timor-Leste, apesar dos grandes riscos de vida, corajosamente, foi às urnas deixar o seu veredicto final. Votou, na expectativa de que a Independência traria os frutos de uma liberdade e vida emancipada.
Depois do anúncio dos resultados, teve lugar o que poderia ser chamado por “terra queimada”. Este acto colocou Timor-Leste num cenário difícil e de várias vertentes. A completa destruição das infraestruturas e muitos edifícios fez com que Timor-Leste perdeu as condições de entrar directamente numa fase mais avançada do processo de transição. A Resistência e a Parte Indonésia tinham aceitado que depois do Referendo seria efectuado uma reunião entre as duas partes para discutir o futuro que viria depois dos resultados do Referendo.
Foi marcado para 5 de Setembro de 1999 e a ser realizado o encontro em Díli. Contudo, o 4 de Setembro impediu a realização deste encontro e levou Timor-Leste a outro cenário. Casas queimadas e destruídas; bens roubados; deslocação das populações para destinos diferentes. Enfim, uma ordem de sacrifícios e sofrimentos desmedidos que pairou sobre o Povo de Timor-Leste.
A Reconciliação mensurada nos encontros cognominados “ Dare I e Dare II”  foi simplesmente um acto de “mesa” para episódio político e publicidade. Os Líderes timorenses, apesar de acreditarem na Reconciliação, dependiam dos ventos que sopravam de lados opostos e nunca podiam reter o rumo da violência, porque não eram sujeitos do percurso histórico!
O referendo, a UNTAET e as agências internacionais
Ao falarmos do REFERENDO nunca se deve separar dos seus resultados os mecanismos estabelecidos no acordo de 5 de Maio de 1999.
Segundo Avelino Coelho, o acordo de 5 de Maio de 1999 criou mecanismos próprios e relevantes para abordar a solução e desenvolver um modelo de organização de administração que permitiria às Nações Unidas cumprir o seu mandato de descolonização, já que a potência administrante não estava em condições de cumprir as suas obrigações.
O Secretário Geral das Nações Unidas, auferidos os resultados, usando do seu mandato estabeleceu a UNTAET como administração transitória. Na opinião de Coelho “havia duas tarefas interligadas: Reconstrução das infraestruturas e transição política para a transferência do Poder aos Timorenses”.
A verdade é que no contexto vivido de forma muito conturbada, nos dias seguintes ao referendo, depois da divulgação dos resultados, em que foram destruídas vidas e infraestruturas essenciais como escolas, hospitais e quartéis, entre outras, assistiu-se de forma significativa ao aumento da dependência externa dos timorenses na medida em que o país ficou totalmente destruído e sem meios de subsistência.
Nesta linha de raciocínio, numa perspectiva de problematização, atendendo a que a pobreza e a miséria estão espalhados pelo país, Avelino Coelho pergunta: “será que  os problemas sociais e económicos do povo irão ser resolvidos nos próximos anos? A administração transitória transferiu de facto o poder aos timorenses?
 Timor-Leste precisa de um modelo socioeconómico não importado
A ideia que transparece das dúvidas deste académico e político remetem para uma pergunta de âmbito ainda mais profundo e complexo habitualmente colocada pelos socialistas timorenses:
Será que a UNTAET trazia consigo uma agenda estruturada, em articulação com agências internacionais, e à revelia dos interesses económicos e culturais nacionais?
Será que o modelo de democracia introduzida em Timor-Leste, actualmente em desenvolvimento, cimentará uma cultura de governação e de governo que responda aos anseios da sociedade?
Estas questões complexas (não resolvidas) pairam nas mentes de milhares de timorenses, porquanto, refere Avelino Coelho, passados 20 anos, “Timor-Leste continua a ser um campo experimental, à revelia dos mais fragilizados e necessitados, aqueles que não têm voz, precisamente pela total dependência económica em que vivemos, com a presença crescente de projectos internacionais concebidos no exterior, nomeadamente nos sectores da educação e da agricultura, uma espécie de «pronto a vestir», operacionalizados no país por assessores internacionais e por nacionais menos avisados, e que em nada favorecem o progresso, o desenvolvimento e a independência nacional”.
Em conclusão, lê-se no pensamento de Avelino Coelho, o Referendo foi um mecanismo internacional utilizado para solucionar o conflito político-militar em Timor-Leste.
Depois do Referendo e da Restauração da Independência, defende Coelho, “compete agora aos líderes timorenses guiarem este Povo pelos seus próprios caminhos de Democracia e aplicar um modelo socioeconómico, não importado, mais adequado, para que se possa erguer Timor-Leste como uma Nação e um Estado Soberano firmado na sua própria cultura e valores de civilização que com ela cresceu antes do cruzamento com outros povos e valores”.
Durante a luta de Resistência pela Libertação do País assumiu funções relevantes, tendo sido indigitado em 1995 para assumir o cargo de Conselheiro Político Militar tendo trabalhado directamente com o Comandante-em-Chefe das Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste (FALINTIL), Kay Rala Xanana Gusmão.
Como principal fundador da Brigada Negra (BN), um Comando Especial das FALINTIL para a Guerrilha Urbana em Timor-Leste e na Indonésia,  teve um papel determinante na organização da Frente Clandestina nestes dois países. Foi também fundador da Associação Socialista de Timor (AST), OJECTIL e de outras organizações da resistência.
Em 1996 foi indigitado pelo Comandante-em-Chefe das FALINTIL para assumir o cargo de Colaborador do EMG-FALINTIL, trabalhando directamente com o Chefe do Estado Maior das FALINTIL, Comandante Taur Matan Ruak.
Foi membro do Conselho Consultivo Nacional da UNTAET entre 1999 – 2000 e, na reestruturação do Órgão para o Conselho Nacional foi ainda membro do mesmo até 2001.
Foi Secretário de Estado para a Política Energética no IV Governo Constitucional de Timor-Leste (2007–2012) e Secretário de Estado do Conselho de Ministros nos V e VI Governos (2012–2017) de Timor-Leste.
Desde a sua fundação é presidente do Partido Socialista de Timor (PST).
Força Especial das FALINTIL
Avelino Coelho e Xanana Gusmão
A Brigada Negra, também conhecida por BN, fundada em 16 de Março de 1996, era uma das alas militares que integrava o Comando das Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste (FALINTIL) e desempenhava acções políticas e militares durante a Luta de Libertação Nacional numa lógica de Guerrilha Urbana.
Enquanto força especial das Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste (FALINTIL), actuando sob orientação estratégica do Comandante-Em-Chefe das FALINTIL, Kay Rala Xanana Gusmão, a supervisão da sua operacionalização ficou sob responsabilidade de Avelino Coelho (Shalar Kosi, FF).
A Brigada Negra também tinha um Chefe Principal, coadjuvado por vários assistentes operacionais que chefiavam várias secções, e uma representação no exterior para angariação de apoios. Havia quatro secções:
  • Secção A tratava do estudo, organização e planeamento da aquisição de material de guerra para a Brigada Negra e para a Resistência Armada (RA). O planeamento, execução e envio do material à RA era definido segundo mecanismos próprios e em resposta às necessidades que fossem surgindo. Esta Secção começou a funcionar em 1995 e integrava-se nos planos da F. Operação Asuwain. Entre 1995 e 1996 fez-se a organização e tratou-se de toda a preparação interna, e no início de 1997, sob instruções e decisões do Comandante-Em-Chefe das FALINTIL, a actuação.
  • Secção B tinha como grande missão o recrutamento de elementos e a sua preparação técnica na fabricação de explosivos para uso da Brigada Negra e das FALINTIL, e a mobilização desses explosivos para a Resistência Armada. E ainda havia as Secções C e D que tinham como grande missão provocar o caos total na Indonésia.
  • Secção C estava planeada para desencadear a guerrilha urbana em Timor-Leste e na Indonésia, através de sabotagens armadas, principalmente na Indonésia, visando pontos estratégicos, económicos, e pontos sensíveis que pudessem provocar reacções nas massas populares contra o regime. Toda esta estratégia está definida no Job Description da BN.
  • Secção D, basicamente, fazia trabalhos de inteligência e contra-inteligência, e só um número muito restrito da cúpula teve acesso ao seu modo de organização e funcionamento.