Dois jovens
advogados baseados em Paris, Juan Branco, de nacionalidade espanhola, e Omer
Shatz, de nacionalidade israelita, instruíram um processo endereçado ao
Tribunal Criminal Internacional contra as instituições europeias acusando-as de
deliberadamente terem provocado a morte de muitas das 14.000 vítimas de
naufrágio registados de 2014 a 2019 nas costas europeias do Mediterrâneo a fim
de dissuadir outros potenciais emigrantes.
Por Paulo Casaca / Texto en portugués tomado de Jornal Tornado
Pela minha
parte, penso que a iniciativa dos dois jovens advogados só peca por tardia e
que há muito que a União Europeia recorre a formas bárbaras – que passa pelo
puro assassínio – para manter afastada uma massa imensa de gente que foge da
guerra, da perseguição, da fome ou que pura e simplesmente procura o melhor
para si e para os seus.
A
argumentação legal que utilizam os dois jovens parece-me sólida e será
incompreensível que o Tribunal Penal Internacional não venha a considerar a
abertura do processo.
Trata-se de
uma crescente brutalização da humanidade, que passou pela criminalização da
emigração e por uma crescente insensibilidade, colaboração com o crime quando
não pela sua prática.
Em artigo
publicado em Julho de 2008 no jornal de Bruxelas “New Europe” opunha-me à
directiva aprovada em Junho pelo Parlamento Europeu – e entrada em vigor no
final do ano – que previa o encarceramento
de emigrantes ilegais e fazia notar o apoio
entusiástico que lhe tinha dado a extrema-direita austríaca.
De lá para cá
a situação veio a piorar, com a crescente criminalização não só de quem emigra
mas também de quem dá qualquer apoio humanitário a essas pessoas, sendo que a
alternativa política é cada vez mais entre os que defendem abertamente essa
política e os que o fazem de forma camuflada envolvendo-a num manto feito de
hipocrisia e pura mentira.
O caso mais
célebre é o de um olivicultor francês de uma zona fronteiriça, Cédric Herrou,
condenado por dar abrigo a 200 emigrantes fugidos da Itália numa gare de
comboios abandonada. Depois de uma tremenda pressão sobre o sistema de justiça,
primeiro o tribunal da relação e depois o Tribunal Constitucional (que em
França, como em Portugal, é mais político do que jurídico) ele foi quase
totalmente ilibado, tendo-se criado uma jurisprudência que reconhece o princípio
constitucional da ‘fraternidade’ como se sobrepondo a qualquer lei ordinária
anti-imigrantes.
A Itália
aparece aqui como contraponto dado que o seu Ministro do Interior demissionário
defende sem o esconder o princípio da criminalização de qualquer acto
humanitário para com quem quer que seja considerado ilegalmente em território
italiano.
Entender os
princípios essenciais
Creio que não
iremos a lado nenhum nesta questão sem entender alguns princípios essenciais.
O primeiro é
o da existência de grandes fossos nos níveis de desenvolvimento e de
remuneração. A questão não é de igualizar níveis, mas é apenas de evitar que
eles se tornem de tal forma grandes que faça sentido pôr a vida em risco para
os atravessar. Aqui estamos perante muita coisa mas a começar pela fraqueza da
chamada ajuda ao desenvolvimento e pior que isso, a sua deformação em larga
escala quer por parte de objectivos escondidos de quem dá como da corrupção de
quem a gere no local.
O segundo é
entender que são os pobres dos países para onde se dirigem os emigrantes que
pagam a factura enquanto os menos pobres tendem a lucrar com isso. No nosso
país a olivicultura é um exemplo flagrante. Um exército de miseráveis migrantes
que aceita trabalhar em condições que felizmente já não são aceitáveis pelos
portugueses retira aos nacionais as oportunidades de trabalho, com vantagem
evidente para o empresário e desvantagem para o trabalhador.
Enquanto isto
não for entendido, e as elites ditas liberais ou de esquerda continuarão a
empurrar a massa mais pobre e trabalhadora para os braços da extrema-direita de
Salvini ou outra, acusando-a de ser racista, xenófoba e desumana.
Acresce a
este facto que a migração clandestina é um grande negócio e que há muita gente
disposta a pagar somas por vezes enormes para fugir da guerra ou apenas para se
livrar de problemas. É assim que na nossa Europa os criminosos islamistas ou os
seus cônjuges que praticaram genocídio sobre minorias (e que as roubaram) têm
mais facilmente as portas abertas que essas mesmas minorias.
Em terceiro lugar,
a fraternidade tem de jogar obviamente nos dois sentidos. O exemplo da
Congressista democrata norte-americana Ilhan Omar, refugiada da Somália nos
EUA, é paradigmático, ao sugerir que ‘devemos ter
mais medo do homem branco do que dos jihadistas’
depois de ter fugido de um país devastado pelo jihadismo.
A questão é
que mesmo quando as pessoas fogem para preservar a vida, nem sempre são capazes
de se separar das redes mafiosas que as perseguiram em primeiro lugar, sendo
que há frequentemente falsas fugas e reais infiltrações.
Mais uma vez
a condescendência liberal ou de ‘esquerda’ americana pelo racismo e fascismo
que supostamente vem dos povos oprimidos (na verdade vem dos que os oprimem) é
a principal razão que leva à alimentação deste fascismo pintado de vermelho que
naturalmente leva a que se reaja, sem muitas vezes ser capaz de distinguir o
trigo do joio.
Parece-me que
qualquer pessoa que mais do que um abrigo temporário queira uma pátria de
refúgio tem que aceitar os valores essenciais dessa pátria de refúgio e
abandonar as lógicas racistas e fascistas que imperam na sua terra de origem.
Em quarto lugar
temos o problema essencial da cobardia política. Dizia Sarkozy que não
poderíamos aceitar a Turquia na União Europeia porque nesse caso a Europa faria
fronteira com a Síria. Nunca ocorreu a Sarkozy que o problema deveria ser
colocado em relação à deriva islamo-fascista da Turquia que a afasta dos
valores consagrados na União Europeia e que não são os actos políticos que
fazem a geografia.
A realidade é
que a cobardia política ocidental levou a que se ignorasse o drama sírio,
permitindo primeiro que uma revolução democrática se transformasse num conflito
entre jihadismos e depois que assistíssemos à invasão pelo imperialismo
teocrático iraniano (o turco, mesmo aí, ficou muito para trás).
A invasão
irano-russa da Síria (agora também um pouco alargada à Turquia) levou até agora
a um milhão de vítimas, dez milhões de fugitivos e dois milhões de colonos (a
maior parte trazidos pelo império teocrático iraniano do Iraque, Iémen, Líbano,
Afeganistão e Paquistão, mas há também alguns sírios árabes ou turcomenos
deslocados pela Turquia).
O Ocidente
olhou para o outro lado (em larga medida em função de leituras erradas do que
fez no Iraque ou na Líbia) e permite que tanto a Turquia como o Irão ameacem
hoje provocar um êxodo massivo de refugiados se a Europa não se mostrar
cooperante com os seus desígnios.
Ou seja, o
refugiado, e muitas vezes aquele que passou pela lavagem ao cérebro do
jihadismo, é usado como arma de arremesso pelo imperialismo que está às portas
da Europa (porque a Síria está mesmo às portas da Europa, quer Sarkozy o
entenda ou não) com a intenção de lançar o Caos em território europeu.
A quinta razão
é a hipocrisia. É sempre mais fácil dar lições de moral ao mundo inteiro do que
enfrentar os problemas reais que se tem pela frente, e o tecido político-social
ocidental está profundamente corroído pela hipocrisia.
Enquanto não
quisermos equacionar o que temos pela frente e nos quisermos remeter ao papel
de pregadores de falsa moral fechando os olhos à realidade, vamos continuar a
ter o mesmo problema.
Pela minha
parte, os melhores votos para a corajosa dupla de advogados que ousou dizer que
o rei vai nu.