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“Há um fronte que gostaria de me ver à frente de um movimento
contra o papa, mas eu nunca farei isso.” São as palavras do cardeal e teólogo
alemão Gerhard
Ludwig Müller, prefeito emérito da Congregação para a Doutrina
da Fé. Porém, as autoridades da Igreja – acrescenta – devem ouvir, caso
contrário, podem aumentar o risco de um cisma.
A reportagem é de Massimo Franco, publicada
por Corriere della Sera, 26-11-2017. A tradução é de Moisés
Sbardelotto.
“Há um fronte dos grupos tradicionalistas, assim como dos
progressistas, que gostaria de me ver à frente de um movimento contra o papa,
mas eu nunca farei isso. Servi com amor a Igreja por 40 anos
como padre, 16 anos como catedrático da teologia dogmática e
10 anos como bispo diocesano. Acredito na unidade da Igreja e não
permito que ninguém instrumentalize as minhas experiências negativas dos últimos meses. As
autoridades da Igreja, porém, devem ouvir aqueles que têm perguntas sérias ou
reclamações justas; não ignorá-los ou, pior, humilhá-los. Caso contrário, sem
querer, pode aumentar o risco de uma lenta separação que poderia desembocar em
um cisma de uma parte do mundo católico, desorientado e desiludido. A história
do cisma protestante de Martinho Lutero de 500 anos atrás deveria nos
ensinar, sobretudo, que erros evitar.”
O cardeal Gerhard Müller fala com voz linear e um forte sotaque
alemão. Estamos no apartamento da Praça da Cidade Leonina, que, no
passado, foi ocupado por Joseph Ratzinger antes de se tornar Bento XVI,
em um palácio habitado por altos prelados.
Müller, talvez o mais respeitado teólogo católico, é
o ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, substituído de surpresa
em julho passado por Jorge Mario Bergoglio. “O papa me confidenciou: ‘Alguns me
disseram anonimamente que o senhor é meu inimigo’, sem explicar em que ponto”,
conta ele, entristecido.
“Depois de 40 anos a serviço da Igreja, tive que ouvir isto:
um absurdo preparado por fofoqueiros que, em vez de instilar inquietação no
papa, fariam melhor se fossem visitar um psiquiatra. Um bispo católico e
cardeal da Santa Igreja Romana está, por natureza, com o Santo
Padre. Mas eu acredito que, como dizia o teólogo do século XVI Melchior
Cano, os verdadeiros amigos não são aqueles que adulam o papa, mas sim
aqueles que o ajudam com a verdade e a competência teológica e humana. Em todas
as organizações do mundo, os delatores dessa espécie servem apenas a si
mesmos.”
Palavras duras, ressentidas, de quem sente que sofreu um
dano imerecido. O cardealexclui, como defendem alguns rumores alarmistas, que
alguns estejam planejando complôs contra Francisco, em polêmica com
alguns posicionamentos considerados progressistas demais: ele considera isso
“um exagero absoluto”.
Mas admite que a Igreja está abalada por tensões profundas.
“As tensões nascem da contraposição entre um fronte tradicionalista extremista
em alguns sites e um fronte progressista igualmente exagerado, que hoje tenta
se credenciar como superpapista”, de acordo com Müller. Trata-se de minorias, mas aguerridas.
Por isso, o cardeal transmite uma mensagem de unidade, mas
também de preocupação. “Atenção: se for passada a percepção de uma injustiça
por parte da Cúria Romana, quase por força inercial poderia se pôr
em movimento uma dinâmica cismática, difícil de recuperar, depois. Acredito que
os cardeais que expressaram dúvidas sobre a Amoris laetitia ou
os 62 signatários de uma carta de críticas até mesmo excessivas contra o papa
devem ser ouvidos, não liquidados como ‘fariseus’ ou pessoas resmungonas. A
única maneira de sair dessa situação é um diálogo claro e franco. Em vez disso,
eu tenho a impressão de que, no ‘círculo mágico’ do papa, há quem se preocupe
principalmente de ser espião sobre supostos adversários, impedindo, assim, uma
discussão aberta e equilibrada. Classificar todos os católicos de acordo com as
categorias de ‘amigo’ ou ‘inimigo’ do papa é o dano mais grave que eles causam
à Igreja. Ficamos perplexos quando um jornalista bem conhecido, como ateu, se
orgulha de ser amigo do papa, e, paralelamente, um bispo católico e cardeal
como eu é difamado como opositor do Santo Padre. Não acredito que
essas pessoas possam me dar lições de teologia sobre o primado do Romano
Pontífice.”
Müller não vê uma Igreja mais dividida do que nos anos
de Bento XVI. “Mas eu a vejo mais fraca. Custamos a analisar os
problemas. Os sacerdotes são escassos, e damos respostas mais organizacionais,
políticas e diplomáticas do que teológicas e espirituais. A Igreja não é um
partido político com as suas lutas pelo poder. Devemos discutir sobre as
questões existenciais, sobre a vida e a morte, sobre a família e as vocações
religiosas, e não permanentemente sobre a política eclesiástica. O Papa
Francisco é muito popular, e isso é bom. Mas as pessoas não participam
mais dos sacramentos. E a sua popularidade entre os não católicos que o citam
com entusiasmo, infelizmente, não muda as suas falsas convicções. Emma
Bonino, por exemplo, louva o papa, mas permanece firme nas suas posições
sobre o aborto que o papa condena. Devemos ter cuidado para não confundir a
grande popularidade de Francisco, que também é um enorme patrimônio
para o mundo católico, com uma verdadeira retomada da fé: embora todos apoiemos
o papa na sua missão.”
Na ótica do cardeal Müller, depois de quase cinco anos de pontificado,
encerrou-se uma fase: a da Igreja entendida como “hospital de campanha”, feliz definição que Franciscoconfiou
à revista La Civiltà Cattolica em 2013, pouco depois da
eleição.
“Foi uma grande intuição do papa. Mas talvez agora seja
necessário ir além do hospital de campanha e arquivar a guerra contra o bem
natural e sobrenatural dos homens de hoje que o tornaram necessário”, defende.
“Hoje, precisaríamos mais de um Silicon Valley da
Igreja. Deveríamos ser os Steve Jobs da fé e transmitir uma
visão forte em termos de valores morais e culturais e de verdades espirituais e
teológicas.” Não basta, acrescenta, “a teologia popular de alguns monsenhores,
nem a teologia jornalística demais de outros. Precisamos também a teologia em
nível acadêmico.”
A partir das suas palavras, intui-se que as críticas são
dirigidas sobretudo a alguns colaboradores de Francisco. “É boa a
divulgação. Francisco tende a ressaltar, com razão, a soberba dos
intelectuais. Às vezes, no entanto, os soberbos não são apenas eles. O vício da
soberba é uma marca do caráter, e não do intelecto. Eu penso na humildade
de São Tomás, o maior intelectual católico. A fé e a razão são
amigas.”
Na perspectiva do cardeal, o modelo de papado que tende a
emergir intermitentemente, “mais como soberano do Estado do Vaticano do
que como supremo ensinante da fé”, pode despertar algumas reservas.
“Eu tenho a sensação de que Francisco quer escutar e integrar a todos. Mas os
argumentos das decisões devem ser discutidos antes. João Paulo II era
mais filósofo do que teólogo, mas se deixava assistir e aconselhar pelo
cardeal Ratzinger na preparação dos documentos do magistério.
A relação entre o papa e a Congregação para a Doutrina da Fé foi
e sempre será a chave para um profícuo pontificado. E lembro também a mim mesmo
que os bispos estão em comunhão com o papa: irmãos, e não delegados do papa,
como nos recordava o Concílio Vaticano II.”
Müller ainda não curou “a ferida”, como ele a chama,
dos seus três colaboradores demitidos pouco antes da sua substituição. “Eram
padres bons e competentes que trabalhavam pela Igreja com dedicação exemplar”,
é o seu julgamento. “As pessoas não podem ser mandadas embora ad
libitum, sem provas nem processo, só porque alguém denunciou anonimamente
vagas críticas contra o papa movidas por parte de um deles...”