O desejo de se livrar do Estado, da regulação, dos impostos e
das perguntas sobre a origem dos recursos criou uma enorme bolha especulativa
Por André Moreira Cunha, Andrés Ferrari e
Luiza Peruffo (*) / Texto en portugués.
Em 2022, os mercados financeiros estão em baixa persistente. As incertezas sobre os rumos do conflito militar na Europa, a aceleração inflacionária, a perspectiva de menor crescimento da renda, os conflitos geopolíticos derivados da tentativa de os Estados Unidos e seus aliados conterem a ascensão de novos poderes globais, dentre outros fatores, contaminam as decisões dos gestores da riqueza privada. Nem mesmo os generosos estímulos monetários dos últimos anos conseguem reverter a onda de pessimismo.
Dentre os segmentos mais afetados, o de criptoativos é que o
mais se destaca. Entre o final de 2021, quando sua capitalização se aproximou
dos US$ 3 trilhões, e meados de maio, verificou-se uma perda acumulada
equivalente a US$ 1,5 trilhão (-54%). Para se colocar em perspectiva, o mercado
global de renda fixa, que é cem vezes maior (seu valor atingiu US$ 136
trilhões, em abril de 2022), experimentou -6% de variação naquele mesmo período.
No mercado acionário, os índices globais revelam variações acumuladas ao redor
-20%: S&P
Global BMI (-16%), MSCI (-18%), FTSE (-16%);
assim como as
principais bolsas de valores ao redor do mundo. Se há um movimento mais
geral de fuga do risco e de busca de proteção, o comportamento específico do
mercado de criptoativos revela uma maior aversão por parte dos investidores.
Em artigos anteriores, procuramos
argumentar que as criptomoedas nasceram sob a inspiração libertária de se
retirar do Estado o poder de monopólio da emissão monetária. Instrumentos como
o Bitcoin passaram a representar a possibilidade de os indivíduos se libertarem
das amarras impostas pela regulação. Não à toa, este mercado passou a atrair
toda a sorte de estratégias para viabilizar pagamentos internacionais e, quando
aquele se tornou mais robusto, realizar ganhos de arbitragem. Indivíduos e empresas
que não conseguem demostrar a origem dos seus recursos, porque derivados de
atividades ilícitas, representaram o estímulo inicial ao aumento na
capitalização dos criptoativos. Este movimento, por sua vez, passou a atrair
especuladores e, mais recentemente, pequenos poupadores.
Fabio
Panetta, do Banco Central Europeu (BCE), ao olhar tal evolução e a
proliferação de instrumentos, concluiu que eles apresentam mais problemas do
que vantagens para o conjunto da sociedade. Não são úteis como moedas, agridem
o meio ambiente e apoiam atividades ilícitas. Diz ele: “…os criptoativos,
especialmente os não lastreados, não são úteis como dinheiro … (ademais) são
amplamente utilizados para atividades criminosas e terroristas … cerca de 23%
de todas as transações estão associados a atividades criminosas. Criptoativos
também podem ser usados para evasão fiscal ou para contornar sanções.
Criptoativos baseados em blockchains … também podem causar enormes quantidades
de poluição e danos ao meio ambiente. Eles são criados em um processo de
mineração descentralizado, que utiliza uma enorme quantidade de energia.
Estima-se que a mineração na rede bitcoin consome cerca de 0,36% da
eletricidade mundial – comparável ao consumo de energia da Bélgica ou do
Chile.”
A retração em curso produziu perdas que já chamam a atenção
das autoridades das economias mais influentes. A Secretária do Tesouro dos
Estados Unidos, Janet Yellen, tem sido clara sobre a opacidade no mercado de
criptoativos e de que os mesmos precisam de maior regulação. Em depoimento ao
Senado afirmou que: “É
realmente necessário um arcabouço regulatório para nos proteger dos riscos”.
Já a presidente do Banco Central Europeu e ex-Diretora Gerente do FMI, Christine
Lagarde, deixou claro que “criptoativos são altamente especulativos, ativos
muitos arriscados”. Para ela: “… minha percepção é de que eles não têm valor
real. Estão alicerçados no nada, baseados no nada e sem ativos que os sustentem
e, assim, que os ancorem de forma segura.”. Em seu último Relatório
sobre a Estabilidade Financeira, o Federal Reserve comparou o risco posto
pelos criptoativos àquele experimentado nos fundos dos mercados monetários,
quando da crise financeira global (2007-2009).
David
Gerard e outros especialistas em finanças e em ativos exóticos há
muito alertam para o fato de que os fundamentos dos criptoativos são tão
sólidos quando a fumaça expelida pelo escapamento de veículos movidos a
combustíveis fósseis. Warren Buffet, o “Oráculo de Omaha”, disse que não
pagaria nem US$ 25 por todos os criptoativos do mundo, pois eles não
produzem nada. Fabio
Panetta, do BCE, compara este mercado ao Velho Oeste. Sam Bankman-Fried,
fundador da FTX, plataforma de
negociações de cripatoativos, admite que os problemas ambientais gerados pela
“mineração” e as ineficiências da descentralização dificultam
a utilização de tais instrumentos como base para pagamentos. No limite,
para viabilizar alguma moeda privada digital haveria de se lastreá-la em algum
ativo real, como o ouro, além de se ampliar a eficiência em rede de sua geração
e utilização. Em entrevista ao Financial Times, o
bilionário do mundo virtual admite que não tinha a mais remota ideia
do que eram criptoativos, mesmo quando ganhava fortunas com operações de
arbitragem neste segmento.
O Colapso dos Criptoativos e a Ilusão Libertária
A desconfiança ganhou intensidade com a crise
da TerraUSD (LUNA), uma das assim-chamadas “moedas estáveis” (stablecoins).
Estes instrumentos surgiram para enfrentar um problema estrutural dos
criptoativos: a volatilidade associada à ausência de colaterais reais e de
contrapartes centralizadas. Em geral, tais stablecoins mantêm
um lastro em moedas estatais consideradas seguras. Assim, por exemplo,
estabelece-se uma paridade de 1:1 com o dólar estadunidense. Em tese, para cada
unidade criada desta “moeda estável” haveria de ser ter um dólar reservado e
creditado em uma instituição financeira. Esta faria a custódia dos valores
equivalentes em dólares estadunidenses dos criptoativos criados. Nesta
categoria destaca-se o Tether (USDT), que ocupa o terceiro lugar no ranking de
capitalização dos criptoativos reportados pelo CoinMarketCap, atrás apenas do Bitcoin
(BTC) e do Ethereum (ETH).
A despeito das promessas de “estabilidade”, conversibilidade
e transparência, a empresa responsável pela emissão do TerraUSD responde a
processos judiciais por acusação de
fraude e manipulação do mercado. Ademais, jamais ofereceu aos investidores
balanços devidamente acreditados por auditores independentes. A transparência
nunca foi um forte dos criptoativos, nem mesmo nos que se pretendem estáveis.
Outras “stablecoins” populares, tais como o Binance (BUSD), o Gemini (GUSD), o
Coinbase (USDC), para citar algumas, compartilham daquelas características.
No dia 09 de maio, em meio a um movimento baixista mais geral
dos criptativos, iniciado em novembro de 2021, e que ganhou intensidade nos últimos
três meses, a TerraUSD (LUNA) entrou em queda livre. Em uma semana, sua suposta
paridade derreteu e seu valor transacionado nos mercados, que atingira o pico
de US$ 120 no mês de abril chegou a US$ 0,00018. No começo de abril, a capitalização total
da TerraUSD era de US$ 41 bilhões. Atualmente, é de pouco mais de US$ 1
bilhão. A crise do TerraUSD foi o gatilho que acelerou a queima de ativos neste
mercado, cujas perdas nas últimas quatro semanas atingiram US$ 830 bilhões. Os
US$ 40 bilhões perdidos na capitalização do TerraUSD representam apenas 5%
daquele montante, o que nos indica que a desconfiança não está localizada neste
instrumento, mas em todos os ativos criptográficos.
“Manias, pânicos e colapsos” financeiros são recorrentes ao
longo da história, como nos demonstraram os trabalhos seminais de Irving Fisher, Charles
Kindleberger e Hyman Minsky.
Dificilmente os colapsos acontecem de forma isolada ou casual. Eles representam
o ponto culminante de trajetórias prévias de euforia especulativa, onde os
investidores assumem que é possível eliminar o risco e ganhar sempre e para
sempre. Se, em sua origem, os criptoativos surgiram do desejo de contrapor o
poder estatal, sua evolução e a sua crise atual se assemelham aos movimentos
especulativos experimentados em outras crises financeiras.
As manias especulativas nascem da combinação de vários
elementos, tais como as condições de elevada liquidez nos mercados monetários,
as posturas dos investidores diante do risco, a expectativa de ganhos acima dos
padrões normais, a alavancagem dos agentes e a maior exposição relativa às
mudanças abruptas dos mercados, para citar alguns. Nestes marcos, o sistema
financeiro como um todo vai se tornando cada vez mais vulnerável, na medida em
que cresce o volume de dívidas de curto prazo assumidas junto aos bancos,
usualmente com taxas de juros baixas. Tais dívidas se direcionam para a
aquisição de ativos com retornos de prazos mais longos e cujos fundamentos não
são necessariamente sólidos. Seus preços de mercado sobem por razão das decisões
maciças de compras, e não pela sua qualidade e capacidade de gerar resultados
operacionais compatíveis com as expectativas dos especuladores. No caso dos
criptoativos, tal movimento é claro, mas com uma especificidade: não há
quaisquer fundamentos reais ou resultados operacionais a serem avaliados. É a
especulação em estado puro e lastreada apenas nas promessas de ideólogos
libertários e no comportamento de gestores de investimentos que vendem terrenos
na Lua como se fossem conseguir entregá-los.
O desejo de se livrar do Estado, da regulação, dos impostos e
das perguntas sobre a origem dos recursos criou uma enorme bolha especulativa,
cuja implosão deixa um rastro de destruição, particularmente entre os jovens
investidores, que, fascinados pelo mundo virtual, foram engolfados mais
facilmente nesta mania especulativa. Não são poucos os casos de quem
imaginava estar rico antes dos 30 anos e agora se vê diante da dura
realidade de ter perdido todas as economias. Antes da crise em curso, estimava-se que mais da
metade dos investidores em Bitcoins perderam dinheiro neste mercado de
alto risco. Em algum momento do futuro, quando os desdobramentos do movimento
atual estiverem mais claros, será possível estimar, com maior precisão, o
número de mortos e de feridos desta guerra libertária.
Ainda não estamos vivendo uma crise generalizada nos
mercados financeiros, mas uma correção importante em vários dos seus segmentos.
No caso dos mercados de criptoativos, pelo menos única coisa está em alta: a
desconfiança de poupadores e reguladores.
(*) Profesores del Departamento
de Economía y Relaciones Internacionales
de la Universidad Federal de Rio Grande del Sur.
Texto tomado de SUL 21 / Brasil / Imagen: Pixabay