NOTA EN PORTUGUÉS
"A
atuação de Dom Moacyr
Grechi ao logo de toda sua vida o caracteriza de
fato como um homem imprescindível, como se referia o revolucionário Bertolt
Brecht a quem perseverava na luta a vida toda", escreve Gilvander
Moreira, frei e padre da Ordem dos carmelitas.
Frei
Gilvander é mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício
Instituto Bíblica, de Roma; é professor de Teologia Bíblica; assessor da
Comissão Pastoral da Terra – CPT, assessor do Centro Ecumênico de Estudos
Bíblicos – CEBI, assessor do Serviço de Animação Bíblica – SAB – e da Via
Campesina em Minas Gerais.
Eis o
artigo.
Na tarde do
dia 17 de junho de 2019, com 83 anos, Dom Moacyr
Grechi, partiu para a vida plena, terna e eterna.
Nascido dia 19 de janeiro de 1936, na cidade de Turvo, SC, Dom Moacyr
Grechi se tornou membro da Ordem dos Servos de Maria. Foi
nomeado bispo pelo papa Paulo VI, em 1972, e dirigiu a então Prelazia de Rio
Branco, AC, até 1998, durante 26 anos, quando foi promovido a arcebispo de
Porto Velho, Rondônia. Trabalhando no Acre e em Rondônia, ele se destacou pela
atuação em defesa dos indígenas, dos seringueiros e dos camponeses. Dom
Moacyr denunciou a violência agrária e ambiental na região amazônica e
lutou pela punição dos assassinos de Chico Mendes,
que conheceu na militância das CEBs (Comunidades
Eclesiais de Base). Um dos fundadores do Conselho Indigenista
Missionário (CIMI), da Comissão de Justiça e Paz de
Rondônia e da Comissão Pastoral da Terra (CPT),
durante oito anos, Dom Moacyr Grechi foi presidente da CPT,
cargo que ampliou sua projeção como um dos principais nomes da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Dom Moacyr denunciou Hildebrando
Pascoal, condenado a mais de 100 anos de prisão, porque se tornou “o
assassino da motosserra”, ex-coronel da polícia militar do Acre que se tornou
deputado do PFL e mandava matar seringueiros e camponeses com requintes de
crueldade, serrando alguns com motosserra, inclusive. Como arcebispo da
arquidiocese de Porto Velho, Dom Moacyr foi o anfitrião
do 12º Intereclesial das CEBs que aconteceu em Porto Velho, de
21 a 25 de julho de 2009 e teve como Tema: CEBs: Ecologia e Missão – Do
ventre da terra, o grito que vem da Amazônia.
Eu que já era
admirador de Dom Moacyr Grechi desde 1985 quando comecei a
ouvir sobre a atuação pastoral libertadora dele, tive a grande alegria de
participar ao lado de Dom Moacyr Grechi de um Seminário
Nacional das CEBs em Porto Velho, em 2008, e depois
do 12º Intereclesial das CEBs. Inesquecível ver e testemunhar como
Dom Moacyr, após sofrer dois graves acidentes de trânsito, se apoiando em uma
muleta, era admirado e querido pelo povo das CEBs. Todo mundo
queria abraçá-lo. Tornou-se um refrão do 12º Intereclesial das CEBs uma das
afirmações que Dom Moacyr gostava de repetir: “Gente pequena, fazendo coisas
pequenas, em lugares não importantes, conseguem mudanças extraordinárias”.
De 12 a 17 de
julho de 2015, Dom Moacyr
Grechi acolheu em Porto Velho, Rondônia, o IV
Congresso Nacional da CPT. Sua presença no meio dos 1000 camponeses animava
o compromisso da CPT mesmo no início de uma noite escura que
se abatia sobre o povo brasileiro. Ao saudar os/as camponeses, nesse IV
Congresso da CPT, Dom Moacyr profeticamente alertava a todos/as: “Não se
afastem das raízes da CPT e nem da mística do Evangelho de Jesus Cristo, nosso
fundamento”.
Em 2008, Dom
Moacyr Grechi concedeu entrevista à jornalista Zezé Weiss,
autora do livro Vozes da Floresta, Editora Xapuri. Transcreveremos,
abaixo, parte do depoimento de Dom Moacyr que está publicado no livro acima.
“Cheguei
ao Acre em 1971, para cuidar Prelazia do Acre e Purus, hoje Diocese de Rio
Branco, justo no momento em que começava a reação dos seringueiros e posseiros
para ficar nas suas terras. Sou natural de Santa Catarina, mas nessa época eu
era o superior da ordem religiosa dos Servos de Maria, com sede em São Paulo, e
era também o provincial responsável pelo Acre. Com a morte do bispo, o Papa me
indicou para ser o novo bispo da Prelazia. Sorte minha, porque foi o povo do
Acre que me ensinou a ser cristão, a ser bispo, a me comprometer com o lado
justo. Esse povo que eu hoje considero como a minha própria família.
O Acre me
quer muito e me honra com muitas homenagens. Tem um instituto do governo com o
meu nome, tem também um povoado, uma vila, um lugar do povo chamado Vila Dom
Moacyr, onde acontece uma história engraçada, porque na placa do ônibus que vai
para essa vila está escrito só Dom Moacyr. Então o povo fica falando: cadê Dom
Moacyr? Dom Moacyr já vem? Dom Moacyr já passou? E hoje deve estar diferente,
mas no começo muita gente ficava em dúvida se era o bispo ou o ônibus que
estava demorando, que estava vindo, ou que estava voltando. Essa é apenas uma
das muitas histórias da minha amizade e da minha aprendizagem com o povo do
Acre.
Lembro-me da
vez em que um grupo de mães foi me pedir para visitar um seringal perto de Rio
Branco, o Ipiranga, onde o dono estava sendo denunciado por cometer atos de
violência contra os seus filhos e os seus maridos. As mães, os parentes, vieram
três vezes à minha casa pedir socorro, e eu nunca ia. Até que, na terceira
visita deles, um dos homens mais velhos, um senhor de mais de 80 anos, olhou
bem pra mim e disse: Dom Moacyr, o senhor é o bispo, o senhor é a autoridade,
senhor é quem sabe, mas eu sou mais velho, e se eu fosse o senhor eu já tinha
ido lá conferir se o que estamos falando é verdade ou não. Eu pra não ficar de
frouxo fui, e essa visita mudou muito a minha vida.
Em Rio
Branco, tomei como missão organizar as Comunidades Eclesiais de Base por toda a
Prelazia. As CEBs eram células de evangelização, de oração e de fraternidade,
mas eram também onde se formava a consciência para a organização sindical e, um
pouco mais tarde, para a formação do Partido dos Trabalhadores. Foram as CEBs
que prepararam as bases do movimento social para a construção dos sindicatos e
do Partido. Com o tempo, em todo lugar da Prelazia havia uma CEB. Em Assis
Brasil, as CEBs eram tão fortes que esse acabou sendo o único lugar onde o Lula
nunca perdeu uma eleição. Nos tempos difíceis ele perdia no Brasil todo, mas em
Assis Brasil o Lula sempre ganhou.
Com tudo isso
a Igreja Católica acabou sendo uma espécie de útero materno para a gestação de
um sindicalismo independente e lutador, cujos líderes depois formaram o PT.
Alguns me diziam: “Mas Dom Moacyr, não pode, o senhor tem que ser um bispo de
todos, o senhor não pode ser um bispo do PT.” Em resposta, eu sempre dizia e
digo que apenas prestava meu apoio às pessoas generosas que exerciam sua fé
cristã lutando por paz e por justiça social. Eu entendia aquele povo pobre que
fazia o PT para conquistar mais direitos, porque eles já tinham percebido que o
sindicato só vai até certo ponto. E deu certo, porque até hoje o Acre tem um
dos PTs mais bonitos do Brasil, um PT que conseguiu mudar o rosto do Acre, que
foi capaz de chegar ao poder sem se afastar do povo e das lutas populares.
Assim que,
quando chegou o João Maia para fundar os Sindicatos, o pessoal já estava
preparado. Nesse tempo as reuniões do sindicato eram feitas sempre em ambiente
de igreja, a polícia era corrupta até o osso, os políticos uns incapazes, e o
Exército um bando de gente com medo do comunismo e da subversão, a maioria
deles sem saber o que era isso, mas com medo. Era um tempo em que a violência
contava com a total conivência das autoridades, em que a polícia era corrupta e
vendida, e em que o Exército vivia apavorado. O João Maia é uma pessoa que não
pode nunca ser esquecida, porque ele foi um homem corajoso que teve o valor de
organizar os seringueiros dentro dessa conjuntura totalmente desfavorável.
O João Maia
era um Delegado da CONTAG que veio ao Acre para fundar os sindicatos. Ele era
um ex-seminarista alegre e brincalhão que gostava de falar em Latim comigo. Ele
tinha uma marca, que era o diálogo com todos, e ele sempre me dizia: Dom
Moacyr, aprende isso – o diálogo é a chave da sobrevivência nessa terra. Ele
lutava por um sindicalismo independente, mas nem por isso deixava de conversar
com o governador, com a polícia, com o Exército. Ele formou excelentes
lideranças, fundou muitos sindicatos, era destemido e ousado. Foi dele a ideia
criativa de prender os jagunços durante o Mutirão que os sindicatos fizeram em
Boca do Acre. Junto com o João Maia estava sempre o Pedro Marques, advogado
muito bom de luta, muito didático, que tinha um jeito muito especial de ensinar
o Estado da Terra e o Código Civil para os seringueiros.
Eu me lembro
do dia em que o João Maia me pediu para emprestar um salão da Igreja para fazer
a assembleia de fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Branco.
Como eu sabia que vinham muitos, como de fato chegaram mais de 1000
seringueiros e posseiros, eu acabei cedendo a própria Catedral. Do lado de
dentro estavam os trabalhadores, e do lado de fora estava o Exército armado com
escudos e metralhadoras, cercando os trabalhadores como se estivessem cercando
bandidos. Como se os seringueiros não estivessem apenas lutando com compromisso
e com fé para mudar um pouco o rumo das coisas que afetavam suas vidas. Era um
tempo muito duro, com o Exército em cima, sempre tentando intimidar.
Teve uma
reunião na minha casa, da CPT com o CIMI, que o Exército tentou gravar. Uma
freira muito esperta viu um gravador pequeninho na janela, e esse gravador era
do Exército. Como eu era Presidente Nacional da CPT – passei oito anos da
ditadura militar como presidente da CPT — o Mino Carta deu uma nota no jornal
“A República” registrando o incidente.
Anos depois
as denúncias de que eu vivia marcado para morrer se confirmaram. Muito doente,
o Tufik Assmar, dono da Rede Globo no Acre, por uma necessidade de consciência
mandou me chamar e disse: “Dom Moacyr, o senhor é meu amigo, e eu não posso
morrer sem que o senhor saiba que teve um momento em que um militar me visitou
para informar que estavam se preparando para matar o senhor, e eu disse a ele
que não, que nem pensar, que se matassem o senhor eu botava a boca no mundo, eu
contava para o Brasil inteiro.” E imagina que a Globo começou lá na minha casa,
uma emissora muito pobre. Vinha a Copa com todo mundo querendo ver os jogos e o
Assmar, que era um grande proprietário de terras, mas que estava começando no
campo da comunicação, me pediu para instalar os seus equipamentos de baixa
qualidade no quarto da minha casa, que era o ponto mais alto da cidade.
Esse foi um
tempo em que cristãos e não cristãos – no Centro de Defesa dos Direitos Humanos
tinha até um ateu confesso, e tinha o Abrahim Farhat, o nosso Llé, de origem
libanesa, e em Xapuri tinha o Bacurau, um hanseniano que não tinha mão nem pé,
totalmente dedicado, enfim, pessoas que se juntaram aos seringueiros e
posseiros para lutar pela manutenção da terra. Foi o povo da igreja, o Nilson
Mourão, um meninão que depois se tornou muito importante porque fazia a ligação
da fé com o aspecto político, o Padre Paulino e o Padre Pacífico, junto com os
comunistas e com um advogado do INCRA chamado Juraci que fizeram o Catecismo da
Terra, um folheto barato e simples, com apenas cinco perguntas e cinco
respostas, mas que foi o primeiro instrumento de resistência dentro da
floresta. Quem não sabia ler pregava na parede da casa e quando chegava um
capataz dizendo – o senhor tem que sair, porque essa terra agora tem outro
dono, a resposta sempre era: não senhor, eu não saio, o senhor veja aí o que
meu direito está escrito no Catecismo da Terra.
Quando
conheci o Chico Mendes, ele era um participante das CEBS, mas sem grande fervor
religioso. Algumas vezes ele acompanhava a mim e às irmãs nas visitas
pastorais, outras vezes ele até rezava o terço conosco nas comunidades, mas o
que ele queria mesmo era falar de política e de organização. Desde a primeira
vez que o vi já estava claro que ele tinha uma certa formação. Depois ele mesmo
me contou como foi alfabetizado e iniciado na política por uma certa pessoa que
viveu na região. Mas como sindicalista era praticamente um desconhecido até ser
eleito secretário do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia, durante a
assembleia de fundação, em 1973, e ele só se tornou a principal liderança do
movimento depois do assassinato do Wilson Pinheiro em 1980.
O Chico
Mendes começou na luta como todo seringueiro, brigando pela posse, para
permanecer na terra, para ficar na floresta. Foram um pouco as circunstâncias
que fizeram dele essa liderança tão excepcional. Além do preparo ideológico,
ele tinha aquele jeito natural de falar e de se entender com todo mundo. Em
Xapuri nessa época tinham três padres, o padre José, o padre Otávio e o padre
Cláudio. O padre José sempre foi contra ele, mas os padres Otávio e Cláudio
eram seus amigos, sempre o favoreceram. Mesmo assim, ele falava igual com os
três, ele fazia questão de dialogar também com o padre José que não se
engraçava com ele. Mas o Chico Mendes foi fruto também de um momento de
sensibilidade ambiental pela qual o mundo estava passando.
No começo nem
o Chico Mendes, nem ninguém falava de defesa da floresta como um todo. Nessa
evolução para o aspecto ecológico, para levar o pensamento dos seringueiros
para as pessoas de fora da floresta, o Chico Mendes contou com um apoio muito
importante da Mary Allegretti. Eu nem sempre concordei com ela, mas para ser
justo eu tenho que reconhecer que a Mary contribuiu muito para que o Chico
Mendes se transformasse nesse símbolo de luta pacífica em defesa da Amazônia
conhecido no mundo todo. Imediatamente depois da morte dele, eu fui convidado
para a Europa e na Itália eu quase não dava conta de tanta gente querendo saber
mais sobre a luta dele.
Em Paris,
participei de uma grande conferência pela paz, onde o Chico Mendes foi colocado
junto com Desmond Tutu, Gandhi e Martin Luther King como um dos quatro grandes
defensores da paz no mundo. E pensar que o Chico Mendes tantas vezes foi me
ver, foi na minha casa dizer que estava para morrer, que se sentia muito
ameaçado, que tinha certeza que não ia viver… E eu brincava com ele, dizia:
“morre nada, Chico, esses cabras não têm coragem de te pegar.” Mas ele começou
a fuçar fundo, e acabou encontrando provas contra as pessoas que ameaçavam ele.
Um dia o
Chico Mendes chegou lá em casa com uma carta precatória de prisão preventiva
contra o Darli Alves, o mesmo que depois assumiu como mandante do assassinato
dele. “Dom Moacyr, pra quem é que a gente entrega isso?” Eu fui com ele
entregar a tal carta precatória para a Polícia Federal que, em vez de agir
rápido, acabou demorando até que a coisa transpirou, chegou nos ouvidos do
Darli, e pouco tempo depois o Chico foi assassinado.
Hoje sou o
Arcebispo da Diocese de Porto Velho, que tem 84.000 km2. Aqui também os povos
das lutas têm muito carinho por mim, mas a organização popular ainda não
cresceu tanto quanto cresceu no Acre. Aqui houve uma colonização heterogênea e
só agora, dez anos depois da minha chegada, vejo as primeiras lideranças
nascidas no Estado. Aqui temos pela frente uma dura caminhada, porque agora vêm
as usinas hidrelétricas, e a Amazônia continua sendo tratada como colônia pelo
resto do Brasil, que é menor do que a Amazônia. O resto do Brasil está
acostumado a tirar tudo da Amazônia, e a não deixar nada.
Com as usinas
do Madeira, está acontecendo o mesmo de sempre. Vão ser feitos 4.000 km de rede
para levar toda a energia das usinas direto para o sul do Brasil, enquanto que
nós aqui vamos continuar usando energia a óleo diesel para levar a luz até o
Acre. Essa nova geração vai ter que lutar muito para que a energia vinda da
Amazônia ilumine pelo menos um pequeno pedaço da floresta. Só assim a energia
tirada da água dos nossos grandes rios poderá evitar o triste destino da
madeira, do boi e da soja, cuja exploração sempre destrói e sempre maltrata a
Amazônia”.
Enfim, pelas
faíscas de espiritualidade profética apresentadas acima, intuímos que a atuação
de Dom Moacyr Grechi ao logo de toda sua vida o caracteriza de
fato como um homem imprescindível, como se referia o revolucionário Bertolt
Brecht a quem perseverava na luta a vida toda.